Autorretrato, Marques Rebelo
Posto que não se pudesse viver da pena, ou
para tentá-lo teria que descer demais, cortejando público e editores, aceitando
um jornalismo escravizante e dissolvente, para não sufocar ou atrofiar a
vocação, optei por uma vida modesta, modestíssima, inversa do carreirismo – e
note-se que a literatura entre nós funcionou muito como brilhante muleta para a
ascensão social, econômica e política do cidadão semialfabetizado.
Entreguei-me a um ascetismo e empregos modestos, mas relativamente folgados,
que facultassem o maior tempo possível para o ócio de pensar e repensar, matriz
do engenho artístico, e para ler e escrever, na proporção de 20 livros lidos
para 20 linhas escritas, linhas que se reduzirem a 2 publicáveis, aliás uma
excelente média. E não me arrependi jamais da opção – na vida só aspirei a ser
escritor.
Compreenda-se que o exercício da verdadeira
literatura é, antes de tudo, um ato de coragem. È além da coragem para
múltiplos sacrifício, precisamos, especialmente, de coragem para cortar. E
cortei, corto e cortarei sem avareza e arrependimentos, como se cortasse a obra
alheia – e se dá que se vê sempre melhor o Mao alheio que o nosso. Diminui também
o campo do erro, do excesso, do supérfluo. E com tal sistema podador acabamos
por vencer a torpe facilidade, que infelicita tantos valores ponderáveis. E
condicionada, porem, necessito de tempo na minha frente para resolver as
paradas literárias, mesmo as aparentemente simples. Pois nada é simples nos
domínios da criação – ó extenuante ócio! Quanta vez me ofereceram trabalho com
pagamento atraente – afinal o dinheiro é assunto cobiçante e útil – digamos uma
ou duas páginas de colaboração urgente. E combinei:
- Pelo menos uma semana, meu amigo.
Felizmente tenho amigos, até que uma bonita
coleção, apesar de muita gente supor o contrário, dada a minha capacidade de
fazer desafetos literários e penitencio-me de algumas injustiças – obras que
achei chatas, tornaram-se realmente chatíssimas. E os prazos eram concedidos.
Menos uma vê. Certo publicitário queria um conto de Natal, cinco páginas no
máximo, em quatro dias. Estávamos em novembro.
- Preciso de um mês, pelo menos. Serve?
Não serviu – fiquei sem os 400 mil cruzeiros.
Os publicitários são práticos.
Também sou homem prático, isto é, odeio
o rigor do pragmatismo, do planejamento
dogmático, da maquinização desumana. Que o processo de a padronização não
perturbem a ordem natural. Tanto a variedade quanto uma aparente balbúrdia são
formas de equilíbrio vital. Acreditemos que deus não ajuda somente a quem cedo
madrugue. Podemos perfeitamente acordar tarde. Se não houvesse relógios de
ponto, mas pontos de honra, a existência seria mais nobre. No dia em que
estabeleceram relógio de ponto, larguei o emprego, embora me facultassem só
marcar na entrada. Nunca chegara atrasado. Nunca cheguei atrasado em lugar
nenhum. Talvez tenha chegado atrasado no mundo, isto sim. Melhor teria sido se
nascesse há um século passado. O progresso do século XX, frio, mercantil,
ganancioso, e chave de cardiopatias e neuroses, me irrita um pouco. Ou até
bastante. A natureza não melhora relativamente ao progresso que inventa, e que
empurra aos parvos por alto preço, com crediários para iludir. Acho até que
aguça a sua congênita velhacaria.
2
O jogo do engajamento nunca me atraiu. Por
tal razão os comunistas me consideram fascistas, os fascistas me consideram
comunista, os socialistas me consideram reacionário, os liberais me consideram
um sem-vergonha. Não tem a menor importância – por absoluto cálculo e decisão
nunca precisei de posição política para criar e viver, seguro de que, com as
mãos desatadas, pode se nadar melhor e escapar das correntes fatais. Apenas
atrapalhou um pouco certas conquistas justas ou consequentes. Fiquei sempre
colocado à margem das situações, suspeitosamente – o que fortalece a nossa
capacidade de julgar a um ponto de se confundi-la com o cinismo. Mas não
escapamos da onda e uma ocasião, apanhado pelo arrastão politiqueiro, que
propositalmente confundia tubarão com cocoroca, levaram-me a responder
Inquérito Parlamentar e processo criminal – livrei-me com ferimentos leves e
boa dose de náusea.
Um simpático camarada, que não perde vaza, me
condenava por não me candidatara uma apetecível pepineira pública.
- Você não consegue isto por que é burro.
- É. Sou burro – concordei.
E burro morrerei. Há mortes naturais.
3
Que política me apraz? A da livre
deliberação. A maior indignidade que se comete contra o homem é o voto
obrigatório, penso e existo. Ao cidadão deve ser obrigatório o título de
eleitor. Votar, não! Quanto cavalheiro não foi eleito com a ajuda de centenas
de eleitores que não gostariam de votar nele? As pirâmides e convicções
partidárias são mais frágeis do que castelo de cartas. Mas se é impossível o
mundo sem política convicta e partidária, que alegria é o voto em branco! –
afirmação interior que raramente pratiquei, tão contraditório é, sob
todos os aspectos, nosso passeio no mundo.
4
A vida é escola e recordemos duas lições. A
principal: estava escrevendo, menino ainda, meu pai veio de trás, leu e disse:
- Se o sujeito está falando nervosamente,
também nervosamente deve vestir o paletó... Gestos e palavras se harmonizam.
Nunca mais me esqueci. E a complementar: de
repente atacou-me um gosto desvairado pela indumentária em tecnicolor,
como influência talvez de minhas aprofundações no campo da pintura, conquanto o
estilo continuasse da mesma cor sem gritos. Foi na porta da Colombo.
Ostentava impecável e estival conjunto – paletó de uma cor e calça de
outra. Manuel Bandeira apalpou minha gravata:
- Gravata de lã só no inverno
.
Apliquei a escolha também para a literatura.
Há palavras de inverno e há palavras de verão.
E mais outra lição: trabalhei durante uns dez
anos na divulgação das artes plásticas. Modéstia à parte, com inteligência,
entusiasmo, devoção, desprendimento - há provas. Um dia viram que era tempo de
haver um grande museu. Convocaram 50 pessoas para a sessão fundatória.
Compareceram 41, e três delas, que eu conhecia, não tinham em casa um único
quadro nas paredes. Estabeleceram 40 lugares de diretoria, comissões, etc., e
fez-se imediata eleição. Somente um dos presentes não foi eleito - eu.
5
A fascinação da leitura vem cedo, mesmo com luz de
vela, de lampião, de bico de gás, que é luz lindíssima! Aos 7 anos já
alfabetizado por esforço próprio e com o auxílio semanal Tico-Tico e do Jornal
do Brasil todos os dias. Daí para o livro nem foi um pulo – um simples passo. E
afundei-me pelo mundo da carochinha, lastro incorruptível de sonho e imaginação
– debaixo de uma pedra do jardim poderia encontrar um tesouro, com uma varinha
de condão poderia transformar minha tia em sapo! OS 9 anos recebo o Coração
como livro de leitura – felizes tempos! Guardo ainda o exemplar com assinalada
data – 6 de março de 1916 – e a minha assinatura em gorda letra horizontal.
Colou para sempre – é responsável por todo o sentimentalismo que minha pena destila, apesar da vigilância, e que Manuela Bandeira, em 1931, quando da minha
estreia em livro, registraria um pouco soprado em carta por Antônio de
Alcântara Machado, não muito de acordo com a generosidade que a crítica recebeu
Oscarina. E Alcântara tinha razão – muito foguete é para estreia de circo.
Aos 11 anos, um pastor protestante americano, que
acabou bispo em Goiás, pôs nas minhas mãos a Bíblia, na tradução de Antônio
pereira de Figueiredo. E guardo também este livro, datado de 1919, com
assinatura em caligrafia mais magra e sensacional, como a do médico que atendia
a nossa família, jamegão que eu achava deslumbrante. Cético quanto ao seu
conteúdo e destino, até agora tem sido meu livro de cabeceira, o único que
jamais me enfastiou, que abro, que abro constantemente para encontrara riqueza,
inesgotável em exemplos de propriedade expressional. Jorge Amado pirelhiou:
- Ainda bem que o Marques não tem obrigação de
pagar direitos autorais de transição.
Meu pai tinha uma estante com uns duzentos e tantos
livros no corredor, biblioteca um pouco tumultuosamente escolhida, convenhamos
– Herculano, Eça, Camilo, Fialho, Júluio Diniz e franceses, pois já traçava o
meu francês, Anatole, Dumas, Vitor Hugo, Bourget, Daudet, e, incrível que
pareça, Buffon e Darwin, na tradução de Barbier! E foi minha, depressa esgotada
pelo infantil ardor. Mesada tinha pequena – 10 mil réis. Mas compravam-se por
dois tostões naquele tempo! Editoras lusas e francesas inundavam nossos balcões
com variado e barato sortimento. E passei a frequentar os sedutores sebos da
rua São José a adjacências. Carlos Ribeiro era caixeirinho de calças curtas na
Quaresma – vivo como sagui! O velho Matos, português, gerente, era rústico e
boníssimo – quantos livros não me deu em com cara amarrada, olhando-me por cima
dos óculos! Aos 15 anos encontrava lá as Memórias de um Sargento de Milícias,
que foi um alumbramento! E daí por diante a breve e desconhecida vida de
Manuela Antônio de Almeida passo a ser uma das minhas apaixonadas preocupações.
Li, li, li o os olhos são de ferro. E não considero
que, em nenhum caso, houvesse perdido meu tempo. As baboseiras ensinam tanto
quanto as grandes obras. Pelo efeito contrário, como no bilhar. Claro que
ensinam apenas àqueles que seriamente pretendem escrever, sejam meia dúzia de
predestinados para cada cem milhões de amadores.
6
Meu pai tinha escrúpulos vernáculos e colocou-me
sobe a domesticação se seu amigo Mário Barreto. Foram quase três anos de aulas
particulares, noturnas, três por semana, berradas, pois o Mário Barreto era
surdo, algumas vezes interrompidas pela chegada do general Tasso Fragoso, que
vinha discutir questões linguísticas com o mestre. Tomei um fartão de obras
clássicas – o alicerce às vezes penoso- ora indicadas, ora emprestadas, mas
rigorosamente devolvidas, ora tiradas da biblioteca do professor, menos uma –
certa tradução de Beuamarchais, toda anotada pelo olho exigente do gramático,
muito atinado para os problemas de semântica. Tomou-me amizade, ajudou-me
muito, mormente naquilo que eu não precisaria para me tornar escritor, e
severíssimo nas redações; em cada aula tinha que apresentar uma, previamente
determinada, e que ele corrigia, discutindo as correções, achando graça em
achados meus, incentivando-me ou me reduzindo a pó – um extraordinário
exercício! A morte do bom professor foi realmente um abalo que sofri. Finou-se
na Beneficência portuguesa, dizendo:
- Morro feliz numa casa portuguesa entre
portugueses.
Dessa forma explicava muito seu amor. Não perdeu o
latim que me ensinou – ainda estou crente que só temos uma língua, nós os
brasileiros e portugueses e defendo-a o quanto possa. Mas peço vênia para
sustentar que o português cá das nossas bandas banhou a lógica alforria, sem
perder a lógica base, coisa que muitos portugueses não compreendiam e muito
menos estão custando q compreender. Se escritores nossos, como Jorge Amado e
Érico, têm tiragens de 100 mil exemplares, já seria para desconfiar. Quando
formos 100 milhões haverão de compreender...
7
Alguns escritores do tempo e outros já na penumbra,
pois há aqueles que desaparecem em vida, em horas diversas faziam ponto na
Quaresma, ou por lá passavam a farejar escaparates e estantes, exatamente como
eu – não há perfume mais perturbador que papel impresso! Via-os de longe,
somente com um falei, Agripino Grieco – esfuziante de sátira – que deu atenção
ao infante e a quem me mantenho fiel. Mas comoção foi a presença de João
Ribeiro, o tradutor de Coração. Desleixado e bonachão, alheio à maledicência
daquelas conversas de intelectuais, sempre sábia e santamente disposto a
perdoar a tolice, a vaidade, a pequenez. Espírito milagrosamente aberto, anos
depois, quando a vida começava a lhe fugir, com a inteligência intacta
continuara a perceber e a aplaudir a contribuição modernista. Nada foi lido por
mim, sobre mim, com mais emoção, e não seria natural emoção dos estreante, do
que aquelas enxutas linhas no seu “Registro Literário” sobre Oscarina. Suas
críticas eram curtas, mas uma coisa é crítica curta e outra o colunismo
literário. Acho que podem coexistir, o que não pode haver é confusão.
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Estávamos às vésperas do Centenário. Machado de
Assis sofria um momentâneo esvaziamento. A importância de Lima Barreto não era
reconhecida, muito menos que isso. E ambos ganharam com o Modernismo. Monteiro
Lobato crescia como um Maupassant dos pobres, na obra de Rui Barbosa, o gênio
nacional, encontrara a jeito o Jeca Tatu para citar num discurso contra o
Brasil oligárquico. E recitava-se muito Olavo Bilac e havia muitas conferências
literárias sobre o Pé, a Mão, a Luva, a Linha Reta, a Linguagem das Cores...
veio a semana de Arte Moderna acabar com tais jogos florais e fiquei no sereno,
batendo palmas. Crescido o movimento, foi um acordar de inteligências por esse
Brasil a fora. Algumas não eram tão inteligentes quanto imaginávamos, mas
sempre será assim nos períodos de renovação – muitos oportunismos, muitos gatos
por lebre... A Academia de Letras, reduto da fossilização, servia de mira à
juventude, afinal não tão iconoclasta. Atirei minhas flechas.
Com Walter Benevides e Bastos Leite brilhei à
frente de um jornalzinho quinzenal, que se apagou em seis meses – mais flechas
perdidas! Comunicava-me com jovens de todos os cantos do país e quantas
revistas! Acompanhei a rapaziada de Verde e tudo que sobrou da aventura foi a
amizade de Francisco Inácio Peixoto e Gulhermino Cesar. Ah, gracioso período de
tanta poezinha fulera! Por fim desconfiei que a poesia não seria meu forte e
voltei à prosa, cujos ensaios rasgara. Desfrutava-se o edificante clima do
governo Bernardes com estado de sítio permanente, violações de domicílios,
proibição de reuniões e ajuntamentos na rua, mais de duas pessoas conversando
já era olhado como comício, depuração de deputados e a invenção da censura da
Imprensa, da futura delegacia de Ordem |Política, então a 9a. Delegacia
Auxiliar, onde algumas alguns presos suicidaram-se atirando-se das janelas, do
campo de concentração da Clevelândia e dos tenentes comissionados,isto é,
sargentos que passavam àquela patente para cobrir os claros do oficialato, desfalcado
com as expulsões em massa verificadas na escola de Guerra. Foi quando apareceu
em cena o famoso Tenente Jesus.
A Pátria precisava dos meus serviços e lá fui eu me
apresentar ao Forte de Copacabana. Naquele tempo ainda havia percevejos nos
quartéis e ainda há pessoas que têm alergia ao DDT! Um pouco de artilharia de
costa é importante na vida de um paisano e o telêmetro é aparelho fascinante!
Capitão José Agostinho dos santos – o comandante era uma flor. Capitão Honorato
o Pradel, que o substituiu, mostrava-se pessoa decente. O Capitão Calmon,
médico e que fora bom jogador do Fluminense, era uma joias de criatura. Tenente
Pedro Geraldo caprichava em ser um pouco tesudo, porem, depois de algum tempo
entrava na nossa simpatia. Mas tenente Jesus, comissionado, era o diabo! Uma
das suas diabruras consistia em acreditar em exercícios físicos e querer que se
ficasse musculoso à força. Decepcionei um pouco quando venci, com meu físico
miúdo, todas as competições de fundo contra qualquer espécie de latagão e ainda
quando marquei alguns golzinhos nas peladas do Forte. Mas o diabo do homem era
insaciável. Exigiu proezas de equilibrista. Resultado- caí de uns 11 metros de
altura. Ainda bem que a água lá em baixo amoleceu o tombo, contudo sempre seu
para quebrar o espinhaço. Como diagnosticava o Paru, que partilhava das minhas
perneiras particulares e especiais – as famosas Paraná – em dias de ver a
namorada.
A longa imobilidade e o sofrimento – dores
terríveis e não morri por mero acaso – devolveram-me à leitura intensiva e
analgésica, descerravam-se a cortina da legítima ficção. E assim entrei
realmente no palco literário, mas varrendo do espírito a supertição de que há
males que vêm para o bem, meu terreno Jesus.
Quando consegui voltar a andar, tina a novela Oscarina
no bolso, fixação da vida de soldado. Schmidt, que usava pince-nez com fitinha
presa a lapela. Levou-a para São Paulo e lá saiu na Feira Ilustrada. Depois que
saiu fiquei desconsolado – achei-a uma porcaria. E modifiquei-a toda. Lembro-me
ter descoberto que ela acabava antes da última página e tudo ficou direitinho –
tais são os mistérios da criação. Fato engraçado é que o caro Ribeiro Couto
achava melhor a versão inicial...
continua...
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