Contos




Cenas da vida brasileira, Marques Rebelo



1. Como o governador enjoasse de ovos, correram os amigos e coseram as bundinhas de todas as galinhas.

2. — Na sua casa há muitos escorpiões?

   E João Alfonsus:

  — Para o gasto.

3. O homem nunca tinha visto o mar. Um dia, viu-o.

   — Então?

   — Muito chique, muito distinto...

4. Conversinha:

   — Que tal a estrada?

   — Boa para avião.

5. Há uma razão para que o povo não goste muito do Sr. Rubem Braga:

   — Que tal acha a nossa terra? perguntaram-lhe.

   — Bom lugar para se construir uma cidade.

6. A casa mais colonial de Sabará foi construída no ano passado.

7. O café do falecido Aristides ficava na praça mais importante, daí sua freguesia ser numerosa.

   As moças chegavam, sentavam e pediam:

  — Sorvete de chocolate, seu Aristides.

  Aristides era amável, tinha coisas engraçadas:

  — O sorvete acabou, mas tem guaraná geladinho, muito bom, muito diurético.

Disponível em: Releituras




Almas no jardim, Marques Rebelo
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Cercada por uma muralha de morros negros e tristes, silenciosa e limpa, a pequena praça fica num bairro distante, no fim de uma rua nova mas abandonada.  Tem dois mesquinhos repuxos ao gosto municipal, quatro tabuleiros ingleses de grama dum verde que o vento e o sol fustigam e queimam, e vários ficus, ostentando, tesos, figuras recortadas por tesouras de reduzida originalidade.  Tem duas pérgolas também, duas ridículas pérgulas de madeira pintada de branco, onde umas trepadeiras, que se abrem em agressivos cachos solferinos, se enroscam mais ou menos raquiticamente. Sob cada pérgula, um banco.  Não são incômodos, mas que fossem! não há bancos incômodos para os casais de namorados.
Nessa pequena praça, ouvindo a música medíocre dos repuxos , ora numa, ora noutra pérgula, diariamente, ao cair da tarde, eu me encontro com ela, com ela que é branca como uma açucena, que é mansa como uma sombra, que é doce como um favo, com ela cuja voz é uma fonte cantando e cujo olhar traz para mim o mesmo mistério do céu noturno.
Por esta hora, nesse bairro distante que o sol custa a deixar e cujo vento é qualquer coisa de extraordinariamente notável, a pequena praça é pouco frequentada. Raramente crianças vêm brincar nas retas ruazinhas de fino saibro, entre os quatro canteiros urbanos, em volta dos repuxos.  Para um casal apaixonado é uma solidão propícia, uma amável solidão.  Lá estamos todas as tardes, eu e ela, tecendo o delicado tecido das esperanças, frágil teia que não resiste ao menos sopro contrário.
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– Você gosta de mim?
– Adoro!
– Se eu morresse…
– Bobo!
– Então eu não posso morrer?
– Não!
Sacudo os ombros:
– Pois morrerei.  Morrerás.  Morreremos.
Ela — que tem medo da morte! — treme:
– Não tem mais nada para dizer, não?
Tenho.  Tenho um mundo de coisas doces e ternas, ó miragens, ó sonhos, ó devaneios! E tenho um mundo de coisas graves também.  Coisas graves e sérias, mas que jamais sairão, jamais confessarei, ficarão para sempre dentro do meu peito inquieto, tubilhonantes, confusas — oh, extremamente dolorosamente confusas e opressoras! — porque tudo crestariam, pior que o vento da pequena praça, como um vento de fogo.
E ela talvez advinhe as minhas coisas graves e sérias.  Põe em mim os olhos cheios de amor:
– Amo-te com todos os mistérios da tua vida.
E é melhor assim.
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-Cai frequentes vezes, ela, num contemplativo mutismo, o queixo apoiado na mão e o braço apoiado no meu ombro.
– Em que está pensando? — pergunto.
– Em você.
– Ora!… Fala.
– Gosto mais de te ouvir.
Abre o amável sorriso de claros dentes, responde numa moleza:
– Adoro!…
E o amor é isto: se está triste, amo sua tristeza, se está alegre, amo a sua alegria; e há palavras que parecem sem sentido, mas que caem fundo no coração; e há silêncios que valem por todas as palavras; e ora é um sorriso que nos leva para o céu, ora é um baixar de olhos que nos traz o céu com mil estrelas.
Além de nós, uma vez por outra, um outro casal ocupa a pérgula fronteira.  Olham para nós, sorriem, compreendendo, e como nós desenrolam a eterna história dos corações.  Mas são casais intermitentes.  Constantes, constantes como o vento, somos nós.  Nós, os pardais e Liró.
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Os pardais são inumeráveis — ciscam, chilreiam, voam, brigam, amam…  O guarda é um polícia municipal que deve andar pelos quarenta anos, mas a quem se pode dar muito mais.  Tem o porte muito pouco marcial (o pagamento anda sempre atrasado) e o andar de quem já não tem mais pernas.  Com o seu cinzento capacete colonial, escondendo um rosto avermelhado, gretado e melancólico, faz olho morto e complacente aos nossos beijos, aos nossos abraços demasiados.  Já que o vento não consente na primavera dos canteiros, que ao menos nos nossos corações — deve pensar ele — haja flores e outras manifestações primaveris.  Atira pedrinhas aos esquivos peixinhos vermelhos no tanque, peixinhos japoneses cuja cauda tem a transparência das medusas, fica horas e horas numa contemplação, não sei se estúpida ou poética, dos repuxos que não se cansam na sua música monótona, medíocre, inútil.  Com uma continência conivente e frouxa, cumprimenta-nos quando chegamos às quatro e quando saímos às sete, mais ou menos, hora em que a pequena praça começa a sofrer  a noturna invasão dos namorados do bairro.
Liró é o contraste do guarda.  Liró é alegre.  Liró  é brincalhão.  Liró é saltitante.  Mal apontamos, ele corre ao nosso encontro com os olhos transbordantes de simpatia.  Quando partimos, nos leva religiosamente até a esquina mais próxima.  Liró, sabemos, é realmente nosso amigo.  Tem o fraco difícil das verdadeiras e desinteressadas amizades.
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-Hoje não vimos Liró ( o nome foi posto por nós no primeiro dia que viemos à pequena praça).  Perguntamos ao guarda por ele.  Com voz surda, voz gasta, voz sem dentes, respondeu que não sabia.  Sumira desde a véspera., pouco depois de nos termos ido embora.
Ficamos tristes, inquietos (os pardais chilreavam insensíveis).  Se tiver sido apanhado pela carrocinha, combinamos, irei resgatá-lo no depósito público. Se tiver sido vítima de um automóvel — e ela ficou com os olhos úmidos — não voltaremos à pequena praça.  Porque Liró é a vida da pequena praça, convencemo-nos.  Toda a vida.
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Em: Contos Reunidos, Marques Rebelo, Rio de Janeiro, José Olympio 1979, 2ª edição.

Disponível em: Peregrinacultural


Caprichosos da Tijuca, Marques Rebêlo

 

Eram oito horas e acabara de jantar.Minha mulher subira para o quarto e eu, ouvindo o rádio, fumando espichado no velho sofá de palhinha, fazia hora para me meter à obra num romance que ando escrevendo e que me parece infindável. Foi quando bateram palmas no portão. Indiana foi ver que era e voltou informando que se tratava "de um homem que queria falar com o dono da casa".
   - Mas não disse o que quer?
   - Eu perguntei, sim senhor, mas ele disse que queria falar com o dono mesmo.
   Levantei-me
   - Pois vamos vê-lo.
   Era um sujeito magro, pescoço alto de galo de briga, grande nariz bicudo. Tinha o chapéu na mão, não trazia colarinho. Pensei com meus botões: temos facada.
   Sou eu o dono da casa, meu amigo. Que deseja o senhor?
   Ele, com rústica delicadeza, lamentou me incomodar e se apresentou como membro da comissão angariadora de auxílios para o carnaval dos Caprichosos da Tijuca.
   Na véspera, por volta da meia noite, passara um rancho pela minha rua, em passeata de ensaio, com cadência bem marcada, vozes afinadas, um mundo de cuícas e tamborins fechando o cortejo. A barulho acordou os pequenos.
   - Que é mamãe? - perguntou assustado o Zeca, que vai para os três anos.
   - São os malandros; dorme - respondeu ela.
   Zeca não dormiu, ela também não, ninguém na rua dormiu antes que a música se perdesse, grave e comovente, em ruas mais além.
   Foi a razão porque eu perguntei:
   - É aquele rancho que passou ontem por aqui?
   - Não doutor. Não foi. O nosso rancho ainda não saiu na rua. Está em ensaios internos ainda. Deve ter sido o Formigas - e a voz trazia um tom de evidente desprezo.
   - Rivais não é?
   - Mais ou menos , doutor. Mas o nosso é mais antigo.
   Resolvi cortar a conversa:
   - Pois, pelo que suponho, o senhor deseja  um auxílio, não é?
   - É, doutor.Estamos tirando no bairro. Todos os anos fazemos assim - e apresentou uns papéis: - faça o favor de ler.
   - É a licença?
   - Não doutor. É o pedido da diretoria.
   A polícia avisara insistentemente pelos jornais e pelo rádio que só atendessem aos pedidos dos clubes devidamente licenciados por ela. Deviam os angariadores apresentar a competente licença.
   - E o senhor tem licença?
   O homem se perturbou: ter, não tinha. A licença estava com Elizário, que era o diretor da comissão. Mas parecia que não precisava. O clube era muito conhecido.
   - Mas se o doutor está desconfiado, eu trago a licença para o doutor ver.
   Fiquei meio atrapalhado. O homem parecia sério. Mas há tanto malandro com cara de sério... E o diabo é que não trazia licença. Dez, vinte mil réis que perdesse não era nada, afinal de contas, Mas era triste ser embrulhado por um espertalhão sem colarinho, de tamanco e com cara de honesto. Procurei dar um jeito.
   - Não estou desconfiado, absolutamente. Mas é que agora estou desprevenido. O senhor não pode passar amanhã?
   - Posso doutor. À mesma hora?
   - À mesma.
   - Se eu não puder vir, vem o Bastinho pessoalmente. Eu vou falar com ele.
   - É seu companheiro de comissão?
   - Não. É o presidente do clube. - depois que disse, fez uma cara de incredulidade: - O senhor não conhece o Bastinho?
   - Não. Não tenho o prazer.
   O homem mostrou um semblante severo:
   - Pois me admiro, doutor. É muito conhecido. Não há ninguém que não conheça o Bastinho aqui no bairro.
   - Remendei:
   - Então é por isso. Me mudei faz pouco tempo para cá. Morava no centro.
   - Ele mostrou-se satisfeito:
   - Sim, então é isso. Mas ele é muito conhecido. Mora aqui há mais de trinta anos. Foi quem fundou o clube. O clube é velho. O comércio daqui para ele não nega. É só entrar e pedir. O doutor gostaria de conhecê-lo. Ele tem estudos. É de cor, mas tem estudos. Vou falar para  ele mesmo vir aqui. O doutor vai gostar.
   - Agradeci e ele tornou:
   - Mas agora é que estou me lembrando: se o senhor veio para cá de pouco não conhece os Caprichosos.
   - Realmente - atalhei - não conheço e tinha gosto de conhecer.
Já tenho ouvido falar muito dele.
   - É mais antigo, doutor. Tem os Formigas aí no morro. Foi o que o doutor viu ontem. Tem o Estrela da Tijuca mais acima. Mas os Caprichosos é o melhor. Tem muitos campeonatos. No ano passado mesmo levamos a taça de Harmonia. No ano retrasado pegamos a taça de Evoluções. Muitos prêmios. Está tudo lá na sede, muito bem arranjado. Por que o doutor não vai visitar a sede? Era uma honra para nós.
   - Perfeitamente, meu amigo. Quando o senhor quiser.
   - Pois pode ser amanhã mesmo. Amanhã tem ensaio às nove horas. O doutor vai apreciar. O pessoal é afiado. E pode levar sua senhora, sem medo. A sociedade é familiar, doutor. Gente pobre, mas decente. O Bastinho faz questão. As filhas dele estão lá também.
Formam junto com a gente.
   - Pois, então, está feito. amanhã estarei lá. Mas onde é?
   - Não tem que errar, doutor. Sabe onde fica a fábrica de rendas?
   - Sei.
   - Pois é defronte. Naquele terreno grande, perto do rio. O doutor vê logo.É um sobrado. Tem um mastro na sacada com o escudo do clube. O doutor vê logo. Mas se se atrapalhar é só perguntar no botequim, na farmácia, na padaria. Lhe mostram logo onde é.
   - Pois estarei lá.
   Conto com o doutor. Vou falar com  o bastinho. ele não começará sem o doutor chegar.
   E estendeu-me a mão. Era uma mão calosa. Senti vontade de dizer que esperasse, ir lá dentro, vo,tar com uma nota para os Caprichosos. Mas já tinha mentido, não quis me desmentir. apertei-a com calor:
   - Pode contar. E não me esquecerei do auxílio. Não será muito, minhas posses são modestas, mas será dado de boa vontade. Até amanhã às nove. Desculpe a maçada. Lindolfo alves, um seu criado.
   - Não tem nada que agradecer, Seu Lindoufo. Disponha.
   E ele partiu, batendo os tamancos no cimento da calçada.
   Minha mulher descera, perguntouquem era. contei-lhe a conversa toda, rimos, ficamos de ir ao ensaio dos Caprichosos no outro dia.
   - Deve ser engraçado - palpitou ela.
   - Acredito que sim.
   Mas no outro dia cheguei em casa com extraordinárias disposições. Os personagens mexiam-se na minha cabeça furiosamente. Queriam sair, tinham que vier,precisavam viver. Uma cena queme parecera difícil e  que,desesperado, abandonaa no meio, veio clara, perfeita, exatamente como deveria ser. Era só escrevê-la... comi pouco e às pressas e caí no romance. Cena puxa cena. E diálogos, situações, descrições,conceitos, tudo escorria fácil e aproveitável. Poucos retoques mereceriam mais tarde. Fui me entusiasmando. As horas passaram. Minha mulher não me interrompeu. Esqueci-me do mundo, absorvido pelo mundo que ia compondo. Quando dei fé de mim, passava-se da meia noite. Lembrei-me dos Caprichosos - que diabo! 
   - Por que você não me chamou? queixei-me à minha mulher.
   Havia prometido e não tenho o hábito de faltar à minha palavra.
   - Bem que eu me preparei, mas vi você tão entretido, tão disposto, que não tive  coragem de te chamar. Afinal,você não tem que se zangar. Primeiro, o romance.
   - Sim, primeiro o romance.
   Requisitei um cafezinho e voltei para a obra com o mesmo apetite. Os Caprichosos ficariam para o dia seguinte. Foi impossível. No outro dia tivemos amigos para jantar. Velhos amigos, talvez bons amigos, chegaram de repente, num grande pagode, trazendo garrafas de cerveja. Era uma precaução, afirmavam.  Se a nossa comida não desse, defender-se-iam com elas. Deu para todos. A cerveja alegrou os ânimos. A noite correu depressa. Nem me lembrei dos Caprichosos. Talvez nunca mais me lembrasse,se na noite seguinte, pelas oito horas, não me btessem no portão. cheguei à janela - era o Lindolfo.
   Boa noite, doutor. Vim lhe buscar para o ensaio - falou alegremente - o Bastinho está a sua espera para começar.
   Fui eu próprio abrir-lhe o portão, quis que entrasse, ele recusou, esperaria na varandinha mesmo. Eu me desfiz em desculpas:fora inteiramente impossível, tivera quetrabalhar, não imaginasse...
   - Eu sei, doutor. Eu sei. O doutor é um homem de trabalho. Nós vimos.
   - Vimos? me admirei.
   -Vimos sim, doutor. Eu lhe conto. De primeiro o Bastinho ficou zangado com a sua falta. Pudera! - riu. Preparara o pessoal, formara a diretoria para receber o doutor, bateu nove, bateu nove e meia, bateu dez horas e doutor nada! Ele me perguntou mais de cem vezes: - Mas ele prometeu Lindolfo? - Jurava que sim. Quando bateu dez e meia, ele gritou: - pouco caso! E mandou principiar o ensaio. Eu fiquei assim. Falei com ele: Eu acho que não foi desprezo do doutor, Seu Bastinho. O doutor é homem de ocupações. Quem sabe não pôde  vir? ... Ele não queria saber: pouco caso, sim, dizia e redizia. Afinal tivemos uma zada. Ele teimava para um lado, eu teimava para o outro. Resolvemos tirar a teima. viríamos até aqui ver se o doutor estaa em casa, se o doutor tinha saído, apurar a questão. Chegamos, espiamos pela janela, o doutor nem deu sentido de nós. Estava escrevendo, escrevendo, nem levantava a cabeça. O Bastinho só disse uma coisa: - Deve ser uma causa urgente. E me perguntou se o doutor era do crime. Eu não sabia. Ele explicou tudo a diretoria - o doutor estava abafado! ... Ontem não havia ensaio, não adiantava vir lhe importunar. Hoje vale a pena. É ensaio geral.
   Fui. Fui com minha mulher. A diretoria me esperava formada na escada. Deram vivas, houve saudações com cerveja, fui obrigado a fazer um pequeno discurso de agradecimento. Bastinho fez outro por cima do meu: que agradecimento ali só podia ser um - o da sociedade, que se orgulhava de receber em seus salões uma figura da inteligência, etc., etc. Preto, alto e gordo, Bastinho era uma simpatia transbordante. Apertei o mês em casa mas deixei cem mil réis no Livro de ouro.

Contos reunidos, Marques Rebelo.
Disponível em: Livro errante 

Uma Senhora, Marques Rebelo

     Dona Quinota não se importava com a aspereza do ano inteiro. Com ela era ali no duro - trabalho, trabalho e mais trabalho. O ordenado das empregadas, na verdade, era uma pouca vergonha que a polícia devia pôr um paradeiro. Não punha. Vivia metida com a maldita política. Falta duma boa revolução!.. Ah! se ela fosse homem!... Enquanto a revolução não vinha para botar tudo nos eixos, obrigando-a a endireitar empregadas, fazia de criada - cozinhava, varria, cosia, Encerava a casa também, aos sábados, depois que disseram pelo rádio ser higiênico e muito econômico.
     - Econômico? Então se encera mesmo.
     O marido, que já estava acostumado àquelas resoluções, largou no melhor pedaço o volume de Os Miseráveis, meteu sobre o pijama a gabardine cheirando a gasolina na gola e foi telefonar para a loja de ferragens, pedindo duas latas de cera - da boa, vê lá! - chorando um abatimentozinho na escova e na palha de aço: está ouvindo, seu Fernandes?
     Estava sempre para tudo, que,  graças a Deus, era mulher forte. Saira à mãe, que também o fora, morrendo velha de desastre, desastre doméstico, uma chaleira de água fervendo para o escalda-pé do marido, um coronel reformmado, que lhe virou por cima do corpo.
     Nunca se queixava da vida. Não ia à cidade passear, as suas compras eram em regra feitas pelo marido, precisava que a fita fosse muito falada para ela se abalar até o cinema do bairro, onde cochilava a bom cochilar; contavam-se os domingo em que ia à missa, não fazia visitas, nem recebia.
     Não reclamava o trabalho que lhe davam os filhos, três desmazelados que andavam na escola pública, Élcio, Élcia e Elcina, respectivamente quinze, quatorze e treze anos, o que atesta bem a força do marido e dá  ideia o que sria depois de dez anos de casada, se depois de Elcina não tomasse as devidas precauções.
     - Não se esqueçam de dar lembranças à Dona Margarida - aconselhava na hora da saida, enquanto punha nas bolsas as bananas e o pão com manteiga da merenda.Dona Margarida fora sua amiga no colégio das Irmãs, uma bicha no francês, cearense, um talento! Mandar lembranças para ela equivalia a dizer: Olha que são meus filhos, Margarida; filhos de tua amiga Quinota.
     E os exames estavam perto, comprêmios de cadernetas da Caixa Econômica dados pelo prefeito, ridicularizados pelos jornais oposicionistas, elogiados pelos do governo - a Folha  dizia que era um gesto de mecenas mas enfim fartamente anunciados em todos os jornais para incentivo da meninada estudiosa. Ela queria ser mordida por um macaco se não arranjasse três cadernetas para casa. Os filhos é que não faziam fé.
     Bordava para fora,cuidava do Joli, o bichano para sujar a casa era um desespero, e sobrava tempo ainda para ter ciumes do marido com as vizinhas, principalmente Dona Consuelo, uma descarada, é certo, mas muito chique, confessava.
     Chegando o carnaval, tirava a forra.
     As economias  acumuladas saiam do Banco Popular juntas com os juros. Não ficava nada. Metia-se numa fantasia de baiana e inundava a capota do seu automóvel com seus  oitenta e cinco quilos honestíssimos. As meninas iam de baianas também, menos saias, mais berloques, e o menino de pierrô, cada ano de uma cor, porque não é para outra coisa que o dono do Tintol gasta aquele dinheirão em anúncios.Tirava do cabide a casaca do casamento, dezesseis anos por isso (como o tempo corre!), dava um jeito nas manchas:
     - No automóvel, ninguém repara, meu filho- dizia com um sorriso,ora para a casaca, ora para o marido, que se traduzia: lembras-te?
     Ele, então, com uma faixa vermelha na cintura, brincos em forma de argola, pendentes das orelhas demasiadas, enfiava na cabeça um turbante de seda branca com pérolas em profusão, e ia em pé, no carro, de rajá diplomata.
     No terceiro dia, graças a Deus não choveu em nenhum dos três, perguntava para o marido:
     Quanto temos ainda?
     Ele remexia a carteira (bolso da casaca é o tipo de coisa encrencada!), fura-bolos trabalhava passado na língua, e cantava a quantia:
     - Duzentos e oitenta.
     - E os oitocentos do automóvel?
     - Já estão fora.
     - Ah! Bem... - Para fazer contas no ar era um assombro: ... pode gastar mais cento e cinqüenta.

Carro alegórico dos Democráticos.Sta.Rita do Sapucaí RJ
     O resto ficava para agastar depois do carnaval - mas entrava na verba dele - com o fígado do marido, porque depois da pândega ( a experiência de Dona Quinota é que falava) Seu Juca tinha rebordosas. vômitos biliosos, uma dor do lado danada, de tanta canseira, tanta serpentina e tanta cerveja gelada.
     Não faz mal. Não fazia não. A vida era aquilo mesmo: três dias - falava. Mas pensava: por ano. Podia dizer, mas não dizia. Deixava ficar lá dentro. O  " lá dentro" de Dona quinota era umacoisa complicada, complicadíssima, que ninguém compreendia. Só ela mesma e o marido, às vezes.
     Desciam do automóvel à porta da casa, quando o vizinho veio vindo com o rancho da filhaada.
     - Assim, assim...
     Dona Quinota dizia aquele "assim-assim" de propósito.que lhe importava os outros saberem se ela tinha gozado ou não? Quem gozava era ela. Mas gostava de ficar deliciando-se  por dentro coma inveja dos vizinhos: assim, assim... Ah! Ah! Ah!
     Seu Adalberto exultava:
     É isso mesmo. Fez-se despesas enormes ( e Dona Quinota sorria) e não se diverte nada. (Dona Quinota olhava para o céu).É sempre assim. Pois olhe: nós fomos a pé mesmo. Estivemos ali na Avenida na esquina do Derbi, apreciamos o baile do Clube Naval, muita fantasia rica, muita, vimos perfeotamente as sociedades, tomamos refrescos, brincamos à grande. Não foi?
     As mocinhas fizeram que sim, humilhadas, mas os guris foram sinceros:
     Aquele carro do girassol que rodava, hem, papai!
     Seu Adalberto corrigiu logo:
     -Girassol, não, Artur; crisântemo.
     Depois que corrigiu, ficou azul, sem saber ao certo se era crisântemo ou crisantemo - quer ver que eu disse besteira?
     Seu Juca não havia meio de encontrar o raio da chave. Esses bolsos da casaca!...
     -O ano que vem - Dona Quinota falou firme - nós iremos também a pé.
     O marido até se virou. Ficou olhando espantado.Que diabo é isso? - ia perguntando. Por um triz não perguntou. Mas ficou assim... Compreendeu? Parece... Esta Quinota!...
    Foi quando Seu Adalberto, evidentemente mortificado, se refez e sentenciou como experiente na matéria, apesar de nunca ter entrado num automóvel pelo carnaval: é melhor mesmo.
     A tribo sumiu pela porta do 37. A maçaneta fechou por dentro. Torreco torreco.Agora foi a chave - duas voltas. O pigarro do Seu Adalberto, ainda com o acento do crisântemo a fuzilar-lhe na cabeça, veio até cá fora se misturar com um resto de choro, pandeiro e chocalhos, do bonde que passava mais longe. Passos apressados no fundo da rua. O burro do inglês estava na janela do apartamento fumando para a lua. dona quinota ficou olhando-o um pouco, depois cerrou a porta bem e fixou o marido que dava por falta dum brinco: Que cretinos!
     Seu Juca parou no meio do corredor, cara de ressaca, pernas abertas, o turbante nas mãos e esperou mais. Mas Dona Quinota era hermética. O resto ficou lá dentro onde ninguém ia buscar, porque o marido, o único interessado na ocasião, mais morto do que vivo, preferiu tirar o colarinho e a casaca.
     Dona Quinota atirou-se na cama escangalhada e feliz, só acordando na quarta-feira de cinzas ao meio dia.
     Quando o resto da família se levantou, o almoço (feito por ela) já estava na mesa, e dona Quinota se desesperava porque tinha lido no Jornal do Brasil  que foram os Fenianos  que pegaram o primeiro prêmio, quando todo mundo viu perfeitamente que só o carro-chefe dos Democráticos...

 Contos Reunidos.Ed.José Olympio. 1997
Disponívem em:Livro errante

Stela Me Abriu a Porta,Marques Rebelo


    Havia alguns meses que nós nos conhecíamos e jamais o tempo passou rápido para mim.ela era ajudante de costureira no ateliê modestíssimo de Madame Graça, velha amiga de minha mãe. Meu irmão Alfredo, que morreu aos vinte anos, estupidamente, duma pneumonia dupla, era um rapazinho importante: não gostava de fazer  recados, de carregar embrulhos, de comprar coisas para casa na cidade.
    Mamãe respeitava-lhe a  vaidade. E eu fui buscar um vestido que ela mandara reformar – a seda estava perfeita, valia a pena. Quem me atendeu foi  Stela. Madame Graça havia saído e ela não sabia do vestido. Madame Graça não lhe prevenira nada. Mas não poderia esperar?- perguntou. Madame fora ali pertinho, não demoraria. Eu disse que esperaria. Ela me ofereceu uma cadeira, voltou para o seu trabalho e pusemo-nos a conversar.
    Stela era espigada, dum moreno fechado, muito fina de corpo. Tinha as pernas e os braços muito longos e uma voz ligeiramente rouca. Falava com desembaraço, mas escolhendo um pouco os termos, não raro pronunciando-os erradamente.
    - Está aqui há pouco tempo, não é?- perguntei.
    - Não faz um mês.
    É... Eu não a conhecia ainda
    Vem muito aqui, então?
    Muito, muito, não. Mas venho.
    Stela levantou-se para apanhar um carretel de linha e novamente voltou para a terefa, ao lado de manequim encardido. A luz do sol, rala, branda, coando-se através da cortina de musselina branca, caía-lhe aos pés, e na doce pernumbra suas mãos ágeis trabalhavam. Tinha os dedos grossos, marcados de espetadelas,as unhas cortadas bem rentes.
    A senhora sua mãe é amiga de Madame Graça? - indagou depois de trincar a linha preta nos dentes.
    Desde menina.
   Ah!
  Houve uma pausa em que a tesoura entrou em ação.
    Muito boa madame, não lhe parece? perguntou sem me olhar.
    - Muito
    Tenho gostado muito dela. Nunca manda, pede. E pede por favor. Não se zanga nunca, está sempre alegre, disposta animando a gente... Dá prazer trabalhar com uma pessoa assim, não é mesmo?
  Achei discretamente que sim, ela apurou mais um detalhe de sua obra, depois continuou:
    - A última patroa que eu tive era dura de se aturar. Não foi possível agüentá-la mais. Tudo acabava ruim, mal feito. Não falava melhor com a gente, era como se estivesse lidando com escravos. O senhor já teve algum patrão assim?
    -Não.  Eu nunca tive patrão. Sou estudante.
   - ah, sim! ... de quê?
   - Verdadeiramente de nada. Estou acabando preparatórios. Acabo este ano. Depois é que não sei o que vou fazer.
   - Deve continuar a estudar, ora! Se formar. Não há nada como a gente se formar. Meu padrinho sempre dizia isso. Queria que eu fosse professora. Eu comecei a estudar, mas era um pouco malandra – riu – Mas ia indo. Depois é que tudo desandou. Meu padrinho morreu, madrinha ficou em dificuldade e eu me vi obrigada a abandonar os estudos. Fui trabalhar. Como sabia dar meus pontos, meti-me de costureira. É coisa um pouco ingrata. Trabalha-se demais, não há folga. Acaba-se um vestido, pega-se logo outro. Mas pode ser que um dia...
    -Aacredito que sim
    Ela levantou a cabeça:
   -Tudo depende da sorte, pois não é mesmo?
   Quando eu ia responder, o alfinete caiu e me abaixei para procurá-lo.
    Ela fez um gesto:
    -Deixe!
    Mas apanhei –o e entreguei-o:
    Aqui está.
    Muito obrigada. Mas devia ter deixado no chão. São mil que caem por dia. De tarde quando se varre a sala, acham-se todos. É mais prático do que abaixar a todo momento, não acha?
    -Sim, é mais prático. Mas para mim agora foi um prazer...
    Ela sorriu:
    Há gosto para tudo.
    O relógio cantou lá dentro com voz rachada – quatro horas. E Madame Graça chegava com seu sorriso aberto, seus modos despachados, sua gordura demasiada. Queixava-se de mamãe.Uma ingrata! Assim também era demais. Há um ano que não a via ( há menos de quinze dias mamãe tinha ido visitá-la de noite).Jurava que não poria os pés em nossa casa enquanto mamãe não fosse vê-la.
   -É que mamãe anda muito ocupada, Madame Graça. Muito cansada.É tanta lida lá em casa...
   - Eu sei, histórias... – E me entregando o vestido: Diga a sua mãe que se não estiver como ela quer é só mandá-lo de volta.
    E eu me retirei, não sem olhar demoradamente, mas disfarçadamente, para Stela, que me sorriu.

    Aquele sorriso, aqueles olhos me perseguiram dois dias, ao fim dos quais nos encontramos novamente. Ela saía às seis horas da casa de Madame Graça. Às cinco e quinze já estava na esquina esperando por ela. Uma tremura forte e irresistível sacudia as minhas pernas e o meu coração – se ela não viesse? Procurava reagir andando de um lado para outro, fumando  cigarro sobre cigarro, tentando recordá-la, já que suas feições pareciam ter-se desfeito na minha memória.
    Passou absorvida, apressada, não me veria na certa, se não me adiantasse. As pernas tremiam mais.
    - Boa tarde...
    Ela abriu um sorriso perfeito e estacou:
    - Que surpresa!
    Fechando os olhos, plantado à sua frente, disse quase inconscientemente que a esperava.
    - Por mim?
   Sim.
    Verdade?
    Verdade.
    Ela amassou a modesta carteira contra o peito, ligeiramente perturbada e indecisa se continuava parada ou prosseguia.
    - Fiz mal?
    Replicou prontamente:
    - Não
    Porque se fiz, não tenha o menor acanhamento de me dizer. Eu não me zango.
    Não! Falo a verdade.
    Sinto-me feliz por isto. Imensamente feliz.
    Ela pôs-se então a andar e eu perguntei:
  - Vai para casa, não vai??
    Ela olhava o chão:
    - Parece, pelo menos.
    Uma sensação agradável de segurança me enchia todo aí:
    - Podia ir mais devagar do que de costume?
    Ela continuou com os olhos baixos, mas retardou os passos.



Stela Me Abriu a Porta - parte 2


    Passamos a fazer o mesmo caminho todas as tardes, e cada dia demorávamos mais a percorrê-lo. Ao fim  de uma semana íamos de mãos dadas, perdíamo-nos por mil ruas antes de chegarmos à ladeira onde ela morava, no Rio Comprido. Nascera ali, numa casinha de três cômodos, atrás de um armazém que properara. Ali perdera o pai, que era embarcadiço, conhecera o mundo a pamo, outras gentes. Os japoneses comiam arroz com pauzinhos; os chineses adoravam filhotes de ratos fritos na manteiga; num lugar não sabia onde, os indígenas matavam os pais quando estes ficavam velhos; na África, as mulheres é que trabalhavam, os homens ficavam dormindo em casa, bebendo, fumando e se abanando por causa do calor! Deixava-a falar e ela falava muito.
    Sabia eu por que ela se chamava Stela? ah! Ria – por causa duma canoa. Foi a primeira canoa que meu pai teve construída por ele mesmo. Sempre amara o mar, a aventura o desconhecido. Seu desejo era ver o mundo, conhecer todo o mundo. E um dia foi-se ao mar! Acaba num cargueiro – o Sereia. Tinha o casco preto, baixo, um ar de navio fantasma, muito vagaroso. No mar das Antilhas, uma tromba d’água deu conta dele. Não se salvou ninguém. Eram quarenta homens. Ela tinha oito anos. A mãe ficou como louca, não queria acreditar. Ninguém jamais pensara que o pai se casasse com ela. Conheciam- se desde pequenos, tinham sido vizinhos muitos anos na praia de Paquetá, onde o pai dela era administrador duma caieira. Um dia ele chegou de uma viagem, foi procurá-la, dizendo que queria certidão dela para tratar dos papéis. E quinze dias após estavam casados. Um mês depois, ele partiu. Seis meses mais tarde voltou. Mais quinze dias e lá se foi. Quando veio de novo ela (Stela) tinha uma semana de nascida, era muito gorda – uma bola! A mãe escolhera o nome: Lourdes. Ele não disse nada e foi registrá-la. De volta é que se viu – registrara-a com o nome de Stela.
    Tinha ela seis para sete anos, quando ele veio muito doente de uma viagem. Era um reumatismo muito forte, que quase não o deixava dormir. Ao fim de alguns dias estava livre das dores, já podia dormir, mas o médico recomendou que tomasse cuidado com o que fizesse, se possível, um tratamento mais demorado.     Ele tinha seus cobres juntos, e seis meses pode ficar em casa, tratando-se. Foi um tempo feliz! Recordava-se comovida, umas lágrimas furtivas nos olhos. Ele era muito bom! Amava-a muito. Passeavam juntos, iam à praia, ao cinema, comprava-lhe uma porção de brinquedos, enchia-a de sorvetes, balas, gulodices, vestidos novos. O padrinho, que era engenheiro, ralhava com ele: você acaba estragando esta pequena de todo jeito. Ele ria: estragava o que era dele. É, retrucava o padrinho, estraga o que é seu, mas quando for embora quem aguenta são os que ficam.
    Quando ele morreu, a mãe ficou alucinada, queria morrer também. O padrinho protegeu-as. A mãe trabalhava como uma moura, lavando para umas famílias melhores das redondezas. Era ela,Stela, no princípio, quem entregava a roupa. Mas estava na escola. Fora um pouco avoada na escola. Muito distraída, diziam os professores. O Padrinho queria que ela fosse depois para a Escola Normal, saísse professora, tivesse o futuro garantido. Era bom. Mas, infelizmente, o padrinho morreu de repente, do coração, quando ela ia acabar o curso primário, aos quatorze anos. A madrinha ficou mal de vida. Era de São Paulo. Voltou para lá, pois tinha ainda os pais vivos. Adeus, estudos! Foi obrigada a trabalhar. Mas não vai lavar. A mãe não consentiu. Fosse costurar. Dona Amélia costurava para a vizinhança. Tinha boa freguesia. Aceitou-a como aprendiz. Três meses depois estava afiada. Costurar é fácil. Um pouco de jeito, um pouco de paciência, um pouquinho de gosto, o resto vai sozinho. Mas Dona Amélia não queria ainda pagá-la. Era uma exploração! Procurou outro lugar. Foi para um ateliê no Estácio. Depois – a patroa era muito implicante – saiu e foi trabalhar na Mariposa Azul, na Rua Sete. Aguentou-se um ano aí, mas trabalhava demais, comia mal, gastava muito dinheiro em bonde... Assim, tratou de arranjar um emprego mais perto, no bairro mesmo. Esteve pouco tempo nele. Também não havia pequena que parasse lá. Os donos eram uns gringos, gente danada! Só vendo. Andara ainda em duas outras casas, agora estava com Madame Graça. Madame era muito boa. Lá se iam três meses.

 Stela Me abriu a Porta - final

    Uma noite, voltávamos do cinema, ela me disse:
    - Não sei por quê tenho vontade de fugir. Parece que é o sangue de papai.
Eu olhava seu corpo, não respondi. Mas sentia que ela fugiria mesmo, um dia, para nunca mais. Não sei por quê, nada fazia para prendê-la. Aceitava a idéia de fuga como um acontecimento que não podia deixar de ser. As mãos dela eram quentes, apertavam. Os seus olhos eram bem o chamado do mar, o chamado das ondas do mar, o chamado das ondas de um mar desconhecido, verde, fundamente verde, misterioso.
     Sentia-me fraco. Por que não faria nada para prende-la, para tê-la sempre ao meu lado, já que sentia que a amava? Não sei.
     Está tão distante tudo isso, hoje, e o mesmo mistério perdura.
    Por onde andará Stela? Em que mares de homens se perdeu?"
    Às nove horas eu esperava por Stela na esquina combinada. Era uma véspera de Natal, bastante quente, de um céu muito claro. Ela chegou e me disse, calma, resoluta, com grande indiferença pelo destino:
   -   Aqui estou.
   - Querida!
    Fomos andando, resolvidos. Tudo estava preparado por mim, com meticulosidade que me assombrava a mim mesmo. Tinha tratado o quarto. Tinha discutido com o homem do hotelzinho, combinado a chegada.
    É uma moça direita – dissera ao homem. –Séria.
    Destas vêm cá dúzias.
    Era português, com um sotaque muito carregado, um olhar sórdido que me arrepiou. Rebati com raiva:
    - Mais respeito! O senhor está muito enganado! O homem abaixou-se como um tapete. "Desculpasse-o ... Não tinha a menor intenção de faltar ao respeito. Mas é que...” Não quis saber de mais nada. Saí. Estava tudo combinado, às nove, nove e meia, estaria lá com ela.
    Fomos indo. Tomamos um bonde, descemos. Andamos alguns minutos sem dizer uma palavra. Jamais pude saber se era por entendimento tácito, por medo do destino, ou por nojo antecipado do depois. Sei que ela me disse, de repente, com a voz mais rouca, os olhos mais verdes, apertando-me a mão com mais calor:
    - Não devia ter vindo.
    Eu tremi e paramos numa pequena ponte, como se, muda e previamente, tivéssemos combinado parar, não ir para a frente, ficarmos ali para sempre pregados. A lua é paz, é pálida, e nós tão pálidos.  As horas correm, o barulho do rio correndo tinha uma tristeza de morte.
    Duas velhinhas desceram a rua, vagarosas, de preto, escondidas nos xales. Passaram outras pessoas, formas vagas, que não pareciam deste mundo. E os sinos tocavam, tocavam...
    -Vamos? perguntou ela, rompendo um silêncio que parecia ser eterno.
    Não fomos. Ficamos, pregados na pequena onte, ouvindo o barulho do rio e o barulho dos sinos, vendo as estrelas na altura, esquecidos, perdidos, como restos de naufrágio.

 Disponível em:Livro errante

O Galinho Preto, Marques Rebelo

 Parte 1

Quando os ovos de Dona Branquinha arrebentaram, ela contou dez pintinhos brancos e um preto.
- Que coisa!… Esse pintinho com certeza não é meu… Quem sabe não é de Dona Arrepiada? – disse Dona Branquinha lançando um olhar duro e desconfiado para a galinha preta que não chocava nunca e era sua maior inimiga.- Positivamente, esse pintinho não é meu filho!…
Se ela pensou assim, na criação dos pintinhos quem sofreu foi o preto.
Não lhe dava migalhas, nem minhocas, tudo que era bom era para os outros. Uma vez quase o afogou no poço, e quando todos se acolhiam sob suas asas quantes e agasalhantes, ele – coitado!- era origado a refugiar-se debaixo de um velho telhado, tremendo de frio.
Pobre pintinho preto!…
Criado à toa, sem carinho, sem cuidado, sob bicadas frequentes e injustas, nem por isso se tornou agressivo e violento. Tinha o coração terno e sensível e não se pode mudar a natureza.
Um dia, subiu num monte de lixo e viu o mundo todo, porque o mundo para ele era aquele pedaço de terra que seus olhos podiam ver. Sentiu uma cócega na garganta, pensou que ia chorar, fez um esforço e… cantou estridente e fanhoso, mas cantou de galo pela primeira vez.
- Ah! – fez ele – hei de conquistar a glória, hei de ser um grande general ou presidente da república dos bichos – (porque, quando isso aconteceu, o rei Leão não era mais rei e vivia num exílio. Numa jaula de jardim zoológico). – Hei de conquistar o mundo!… – disse, olhando vaidoso, com seus olhos redondos, de cima do lixo, para o pequeno horizonte que podia descortinar. – Hei de ser um grande entre os grandes!
Dizendo isso, o Galinho Preto desceu pelo monte de lixo e seguiu para a floresta, deixando para trás aquela vida mesquinha de Dona Arrepiada – mãe sem coração – e de Dona Branquinha – a mãe que não quis ser mãe.
Andou, andou, andou, até que, cansado, sentou-se à sombra de um tamarineiro e logo uma formiguinha veio falar com ele.
- Onde é que você ai, Galinho preto?
- Ora, Dona Formiguinha, vou andar pelo mundo, vou ser um grande general ou o presidente da república dos bichos.
- Quem tem ambições honestas quando é novo, dorme bem de noite, pois tem a consciência tranquila. – fez sentenciosamente a formiguinha.
- Eu sou assim – disse o Galinho Preto. – Quero vencer.
- Querer é metade da vitória!
Nisto, o Galinho Preto deu um pulo e bateu num Tico-Tico, que voou assustado.
- Ah, Dona Formiguinha, se eu não fosse tão ligeiro ele a teria engolido!
- Ai de mim – suspirou a formiguinha – Devo-lhe a vida e nunca poderei pagar. Sou um pobre bichinho sem importância!
- Quem sabe, Dona Formiguinha?! O mundo dá tantas voltas!
- Queira Deus que um dia eu possa ser útil para você. Mas adeus, seu Galinho Preto! Já estou demorando demais!
E assim dizendo, a formiguinha desapareceu, com medo de outros Tico- Ticos.
O Galinho Preto continuou seu caminho. Andou, andou, andou, até que chegou num arrozal e começou a ciscar uns grãozinhos do chão.
Avançou no meio do brejo, escolhendo um lugar seguro para pisar, até que descobriu uma abelha que se afogava.
Fez uma proeza arriscada para se aproximar dela e disse:
- Segure firme no meu esporão – e esticou a perninha – Segure, depressa!
A abelha agarrou-se com todas as forças que tinha e saiu da água.
- Graças a você, Galinho Preto, não fui para o fundo do brejo. Nem que eu viva mil anos, poderei recompensar. Jamais me esquecerei! Tomara que um dia eu possa retribuir do mesmo jeito.
- Quem sabe?
- Adeus! – Fez a abelha voando.
- Adeus! – Fez o galinho, pondo-se de volta no caminho.
Andou, andou, andou, até que a Lua apareceu no céu e deixou a terra escura.
  
O Galinho preto, Marques Rebelo
parte 2
Estava tão só e com tanto frio que o Galinho Preto começou a tremer, sem saber se era de medo ou de frio. Viu, então, um campo enorme cheio de lanterninhas acesas. “Vou lá pra me aquecer…” pensou. E mais que depressa desceu para o campo. Quando chegou perto, ouviu o choro das lanterninhas e uma vozinha falando:
- Nós éramos quinhentos vaga-lumes felizes, agora somos só trezentos. O sapo vai acabar com a nossa raça.
- Não chore, que eu ensino esse sapo!
E o Galinho Preto ficou prestando atenção. Quando o sapo abriu a boca para engolir outro vaga-lume, o Galinho Preto jogou uma pedrinha na garganta do malvado.
- Ai, ai ai!!! Vou morrer sufocado! – Gritou o sapo, fugindo em pulos curtos.
Os vaga-lumes riram muito e ficaram a noite toda iluminando e aquecendo o toco de pau que o Galinho Foi dormir. De manhã, eles ficaram muito tristes por não poderem fazer nada por ele.
- Quem sabe? – Disse o galinho, já caminhando.
- Ficaremos na esperança! Adeus! – disseram os vaga-lumes.
- Adeus, sejam felizes!
O Galinho Preto abanou as asas e continuou com sua viagem. Andou, andou, andou até que chegou a uma cidade. Era a cidade mais importante da república dos bichos. Lá morava o presidente, que por esse tempo era o Elefante, com todos seus ministros.
- Aqui eu vou ser grande entre os grandes. – Disse o galinho batendo asas e cantando com todas as forças.
Os bichos pararam para vê-lo passar, de peito estufado, olhar vibrante e porte marcial.
- Como é bonito e elegante, esse Galinho Preto! – disse Dona Serra-Serra, jacaré fêmea que estava tomando sol à beira do rio.
- E que olhar atrevido que ele tem! – comentou a Garça.
O Galinho Preto foi ao lago se lavar, lustrou as penas e foi procurar uma pensão na cidade para morar, mas, quando chegou ao centro da cidade, ele se alarmou com a notícia que a Vila do Riacho se revoltou e estava marchando em direção à cidade para ocupá-la e depor seu presidente.
- Que horror! – gritava dona Gorda, uma porca.
- É a guerra! É a guerra! – esganiçava o Dr. Fala-Fala, um papagaio que, como muitos outros bichos, quando aprendia uma coisa só falava nela até cansar.
- E é guerra civil, que é a pior das guerras. – ajuntou o Burro com voz mansa.
- A culpa é do Elefante, que não tem pulso! – afirmou o Ganso.
- Quando eu dizia que ele n ão servia para a presidência… – insinuou, cheia de reticências, a Perereca, que tinha sido a mais forte rival do Elefante na campanha presidencial.
mas o fato é que era preciso agir e todos os bichos começaram a se mover. O javali afiava as presas; os cxaranguejos abriam e fechavam as pinças, exercitando-se; o Tigre afiava as unhas; a Zebra dava coices tremendos no ar.
- Nós vamos vencer! – dizia um.
- Esses revolucionários não aguentam muito tempo! – emendava outro.
- São uns bobões! – ajuntava um terceiro.
E a tartaruga, que ninguém sabia por que participava da guerra, andava como louca de um lado pro outro, providenciando a defesa da cidade.
O Galinho preto correu ao palácio presidencial.
- Senhor presidente, eu quero ser o vosso general!
- Não. – respondeu o Elefante, trombudíssimo.
O Galinho Preto começou a gritar e fez um barulho tão grande que tiveram que mandar o tenente Cachorro prendê-lo.
Pelo caminho, o Galinho Preto fazia um escarcéu. Os bichos paravam e ele gritava:
- Se eu não for o comandante das tropas, esta cidade estará perdida! Vai ser uma desgraça como nunca se viu!
Os bichos todos riam, mas de tanto que ele gritava uns começaram a acreditar.
Depois se soube que os revolucionários tinham avançado decididamente, que a cidade estava cercada por eles, que não entrava mais nada por nenhuma das portas e que seus habitantes iriam morrer de fome se não se rendessem.
- Render é que não. Nunca! – gritaram todos heroicamente.
Mas, assustados, correram para a porta do palácio e pedram para que o presidente soltasse o Galinho Preto.
O presidente, com medo da confusão, soltou o Galinho Preto e nomeou-o comandante chefe das tropas legais.
Assim que se viu livre, o Galinho Preto subiu nas muralhas e começou a cantar com a maior força possível. Ouvindo o canto triunfante do Galinho Preto, os soldados legais, que estavam cedendo terreno, pensaram que a batalha estava ganha e começaram a avançar com um entusiasmo jamais visto em guerra nenhuma. Pelo lado esquerdo avançava a legião dos javalis; pelo direito a coluna dos caititus; pelo centro, mordendo com todos os dentes, atacava o amedrontador pelotão dos jacarés, protegidos na retaguarda pelos caranguejos. E do alto da muralha o Galinho Preto cantava, cantava, cantava!
- A vitória é nossa!
E os revolucionários fugiam, apavorados.
Depois que a vitória foi completa, houve quem dissesse que os revolucionários fugiram porque milhares de formigas subiram pelas pernas deles, mordendo sem dó nem piedade. Outros garantiram que eles debandaram de medo: uma luz enorme, feita de milhões de vaga-lumes, apareceu-lhes na frente e eles pensaram que fosse um pedaço do Sol que tinha caído na terra. Outros, ainda, que foi um enxame de abelhas que caiu sobre eles como uma maldição. Mas nada disso ficou apurado. Boatos…
À noite, a cidade era outra. Os bichos contentes cantavam. Orquestras de passarinhos andavam pelas ruas e os ursos e as borboletas dançavam juntos como malucos. No palácio houve um baile. O Galinho queria falar com o presidente e ele perguntou o que ele queria.
- Eu quero, senhor presidente, que o senhor mande dois carros a uma vilazinha que há do outro lado daquela grande montanha e tragam para cá, com todas as honras, dona Arrepiada e dona Branquinha. Uma em cada carro.
Como ele pediu, assim foi feito. Toda a sociedade estava reunida quando chegaram as duas carruagens ao mesmo tempo.
- Meu filho!… Meu querido filho!… – gritaram as duas galinhas, correndo para abraçar o general.
- Alto lá! – bradou o Galinho preto. – Mandei buscá-las pra terem a certeza de que na vida não se deve desprezar ninguém. A senhora, e dirigia-se para dona Arrepiada, não é minha mãe porque me abandonou no ninho de outra, e a senhora também não é – falava para dona branquinha – porque, assim que viu que eu era diferente, não teve um coração bastante generoso pra me perdoar. Por isso, passem daqui!…
A bicharada começou a gritar e deu uma grande vaia nas duas galinhas, que saíram crrendo envergonhadas, e tiveram que voltar a pé, cansadas e morrendo de fome.
O Galinho Preto não foi presidente, mas disso se consolou depressa, pensando que, afinal, presidente da república é um rei à prestações. Em compensação foi nomeado interventor na Vila do Riacho, onde fez um governo magnífico, o que lhe valeu o posto de marechal.
 

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