Academia Brasileira de Letras
Neste link encontramos o discurso de posse, dois discursos de recepção a novos membros, uma pequena biografia, bibliografia, um texto.
Um carioca da gema
Lêdo Ivo
Marques Rebelo cometeu a imprudência de nascer no Rio
de Janeiro. Resultado: a posteridade deu seu nome a um beco. E não um
beco familiar e pequeno-burguês, mas um vexatório beco na Lapa. Como ele
foi o romancista de Marafa, é possível que tenha acudido à Prefeitura
Municipal homenageá-lo perto das prostitutas, boêmios e marginais de sua
ficção cruel e fagueira. Se tivesse nascido no Ceará, como José de
Alencar, teria ganho uma estátua. Gaúcho, como Érico Veríssimo, haveria
de abrir-se para ele a glória de uma avenida de primeira água, na Barra.
Mas Edy Dias da Cruz - este era o seu nome de certidão, desativado para
dar nova oportunidade a um obscuro clássico português - nasceu em Vila
Isabel.
Assim, ocorreu com ele o mesmo que sucedera a Machado de Assis e Lima Barreto. O autor de Dom Casmurro tornou-se nome de uma ruazinha enjoada do Catete, que, atravancada de carros estacionados, é diariamente escarnecida pelos motoristas desejosos de alcançar o Lago do Machado... de um machado que, pintado por um açougueiro na porta do seu estabelecimento, nada tem a ver com o nosso grande romancista. E, quanto a Lima Barreto, a rua com o seu nome se esconde no formigueiro suburbano: ninguém sabe, ninguém viu. Só existe no catálogo telefônico.
Poderíamos ainda citar o exemplo da Praça Olavo Bilac, a única praça do mundo que não existe, pois a ocupa um sinistro mercado de flores que mal deixa lugar para a passagem dos pedestres. Ah, se Olavo Bilac tivesse nascido no Piauí! O Rio haveria de dar-lhe uma praça maior do que a destinada ao português Antero de Quental.
Essa ingratidão póstuma da cidade a um dos seus três maiores escritores ilumina um dos aspectos mais curiosos da história cultural brasileira, depois de Machado de Assis, que é a solidão dos poetas e prosadores cariocas. Eles surgem sem companheiros e, para sobreviver, têm que se atrelar a uma máfia (máfia no bom sentido) intelectual proveniente da vastíssima região da Sudene, que também inclui Minas Gerais. Foi entre pernambucanos, alagoanos, mineiros, sergipanos e baianos que transcorreu a existência literária de Marques Rebelo. Ele vivia imprensado e com a sensação de que o seu espaço intelectual nativo fora ocupado por invasores ambiciosos e esfaimados.
A sua ficção de miniaturista pode parecer uma criação menor, ao lado da obra impetuosa daqueles que o ressentido Oswald de Andrade chamava de ''os búfalos do Nordeste''. Mas não o é: é uma grandeza escondida, um tesouro guardado. Em suas prosas belas, o Rio de sua vida, recriado pelo conúbio da memória com a imaginação, emerge atravessado de vozes, rumores, cores, humores, aromas, dores anônimas, luminosidades, escuridões, com o movimento dos seus corpos e as aflições de suas almas; cidade tornada alegria de uma linguagem.
Esse prosador que pertencia à linhagem privilegiada (e tão invejada pelos sorumbáticos!) dos artigos literários que sabem rir e sorrir; esse carioca que vivia se coçando e trajava roupas bizarras compradas nos departamentos infantis das grandes lojas de Buenos Aires; esse míope que sabia enxergar as paisagens e as misérias humanas mais do que muitos dos seus confrades de olhos arregalados; esse sarcástico e todavia meigo e amoroso Marques Rebelo ostentava em seu brasão o mesmo lema de Noel Rosa: ''Modéstia à parte, eu sou da Vila''.
E era. Morando em Botafogo ou Laranjeiras, e vagueando pela Cinelândia, o criador de Leniza sentia a nostalgia de Vila Isabel. Era um carioca da gema, típico da Zona Norte, e para ele os túneis são divisas com outros países. Tinha horror a Copacabana: achava que ela devia ser bombardeada todos os sábados. Havia um Rio, um certo Rio, que ele amava e tornou perene em sua obra. Em retribuição, a cidade o converteu num nome de beco estreito e escuso. Mas por esse beco passam diariamente os cariocas sem nome que costumamos identificar como ''personagens de Marques Rebelo''. E isto, e só isto, é a glória.
Assim, ocorreu com ele o mesmo que sucedera a Machado de Assis e Lima Barreto. O autor de Dom Casmurro tornou-se nome de uma ruazinha enjoada do Catete, que, atravancada de carros estacionados, é diariamente escarnecida pelos motoristas desejosos de alcançar o Lago do Machado... de um machado que, pintado por um açougueiro na porta do seu estabelecimento, nada tem a ver com o nosso grande romancista. E, quanto a Lima Barreto, a rua com o seu nome se esconde no formigueiro suburbano: ninguém sabe, ninguém viu. Só existe no catálogo telefônico.
Poderíamos ainda citar o exemplo da Praça Olavo Bilac, a única praça do mundo que não existe, pois a ocupa um sinistro mercado de flores que mal deixa lugar para a passagem dos pedestres. Ah, se Olavo Bilac tivesse nascido no Piauí! O Rio haveria de dar-lhe uma praça maior do que a destinada ao português Antero de Quental.
Essa ingratidão póstuma da cidade a um dos seus três maiores escritores ilumina um dos aspectos mais curiosos da história cultural brasileira, depois de Machado de Assis, que é a solidão dos poetas e prosadores cariocas. Eles surgem sem companheiros e, para sobreviver, têm que se atrelar a uma máfia (máfia no bom sentido) intelectual proveniente da vastíssima região da Sudene, que também inclui Minas Gerais. Foi entre pernambucanos, alagoanos, mineiros, sergipanos e baianos que transcorreu a existência literária de Marques Rebelo. Ele vivia imprensado e com a sensação de que o seu espaço intelectual nativo fora ocupado por invasores ambiciosos e esfaimados.
A sua ficção de miniaturista pode parecer uma criação menor, ao lado da obra impetuosa daqueles que o ressentido Oswald de Andrade chamava de ''os búfalos do Nordeste''. Mas não o é: é uma grandeza escondida, um tesouro guardado. Em suas prosas belas, o Rio de sua vida, recriado pelo conúbio da memória com a imaginação, emerge atravessado de vozes, rumores, cores, humores, aromas, dores anônimas, luminosidades, escuridões, com o movimento dos seus corpos e as aflições de suas almas; cidade tornada alegria de uma linguagem.
Esse prosador que pertencia à linhagem privilegiada (e tão invejada pelos sorumbáticos!) dos artigos literários que sabem rir e sorrir; esse carioca que vivia se coçando e trajava roupas bizarras compradas nos departamentos infantis das grandes lojas de Buenos Aires; esse míope que sabia enxergar as paisagens e as misérias humanas mais do que muitos dos seus confrades de olhos arregalados; esse sarcástico e todavia meigo e amoroso Marques Rebelo ostentava em seu brasão o mesmo lema de Noel Rosa: ''Modéstia à parte, eu sou da Vila''.
E era. Morando em Botafogo ou Laranjeiras, e vagueando pela Cinelândia, o criador de Leniza sentia a nostalgia de Vila Isabel. Era um carioca da gema, típico da Zona Norte, e para ele os túneis são divisas com outros países. Tinha horror a Copacabana: achava que ela devia ser bombardeada todos os sábados. Havia um Rio, um certo Rio, que ele amava e tornou perene em sua obra. Em retribuição, a cidade o converteu num nome de beco estreito e escuso. Mas por esse beco passam diariamente os cariocas sem nome que costumamos identificar como ''personagens de Marques Rebelo''. E isto, e só isto, é a glória.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 4/1/2006
Marques Rebelo: a estrela sobe
Arnaldo Niskier
Marques Rebelo
notabilizou-se com esse pseudônimo. O seu nome verdadeiro era Eddy Dias
da Cruz, carioca nascido em 1907 e que viveu na sua cidade até o ano de
1973, quando faleceu aos 66 anos de idade. Faz parte de um grupo de
elite de escritores cariocas, entre os quais podemos citar Machado de
Assis, Lima Barreto e o nosso confrade Carlos Heitor Cony.
Bisneto do II Barão da Saúde, chegou a estudar três anos de Medicina, no final da década de 20, mas abandonou os estudos para dedicar-se de corpo e alma ao jornalismo e à literatura. Mais tarde concluiu o curso de Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade Nacional de Direito da então Universidade do Brasil. O seu pendor, no entanto, estava mesmo voltado para a literatura.
Adepto da escola realista, escreveu o primeiro livro em 1931, com o título de Oscarina. Depois vieram Três Caminhos, do qual o conto Vejo a lua do céu tornou-se telenovela; Marafa; o clássico A Estrela Sobe (1939) e em seguida o não menos famoso O Espelho Partido. Escreveu também diversos contos, a peça teatral Rua Alegre, em 1940, crônicas, biografias (dedicando-se à vida e obra de Manuel Antonio de Almeida, literatura infantojuvenil (10 livros) e literatura didática, em que se insere a Antologia Escolar Portuguesa, de 1970.
Homem incansável, foi autor de inúmeras traduções, como a de Ana Karênina, de Tolstói, em 1948, além de ter alcançado outros autores, como Flaubert, H.G. Wells, Júlio Verne, Balzac e Franz Kafka.
Tive o prazer (imenso) de conhecer pessoalmente Marques Rebelo. Foi no começo da minha carreira jornalística, no idos de década de 50, quando trabalhava no jornal “Última Hora”. Samuel Wainer, em sua época dourada, comprou também a Rádio Clube do Brasil (PR-A3). E entregou a direção ao seu amigo Eddy Dias da Cruz. Ele logo valorizou o lado jornalístico da emissora e deu força ao setor de esportes, dirigido por Raul Longras. Havia uma parceria muito estreita entre a rádio e o jornal, tanto que muitos repórteres da “Última Hora” eram apresentadores na emissora de rádio, entre eles eu me encontrava, transmitindo notícias – e até jogos de futebol, como ocorreu na estreia com um Fluminense x Portuguesa, no campo do América F.C.
Por falar no clube de Campos Sales, Marques Rebelo era completamente apaixonado pelo América, ao qual dedicou muitas crônicas de louvor e encantamento. Era levado por um pensamento que ficou para sempre guardado: “Nenhum minuto é vazio, desde que possamos sonhar.”
E tivemos a vida acadêmica de Marques Rebelo, a partir de 1965, na cadeira nº 9. Ao tomar posse, revelou-se “um carioca de Vila Isabel, bairro que tem nome de princesa, mas é proletário e pequeno-burquês, e cuja gente humilde foi o básico material de sua ficção e do seu amor.” Marques Rebelo chegou a participar da diretoria da Casa de Machado de Assis, depois de retratar a cidade nos últimos anos pré-industriais, quando na Tijuca ainda se faziam serenatas, a Lapa estava no auge e casais de namorados passeavam de bonde.
Bisneto do II Barão da Saúde, chegou a estudar três anos de Medicina, no final da década de 20, mas abandonou os estudos para dedicar-se de corpo e alma ao jornalismo e à literatura. Mais tarde concluiu o curso de Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade Nacional de Direito da então Universidade do Brasil. O seu pendor, no entanto, estava mesmo voltado para a literatura.
Adepto da escola realista, escreveu o primeiro livro em 1931, com o título de Oscarina. Depois vieram Três Caminhos, do qual o conto Vejo a lua do céu tornou-se telenovela; Marafa; o clássico A Estrela Sobe (1939) e em seguida o não menos famoso O Espelho Partido. Escreveu também diversos contos, a peça teatral Rua Alegre, em 1940, crônicas, biografias (dedicando-se à vida e obra de Manuel Antonio de Almeida, literatura infantojuvenil (10 livros) e literatura didática, em que se insere a Antologia Escolar Portuguesa, de 1970.
Homem incansável, foi autor de inúmeras traduções, como a de Ana Karênina, de Tolstói, em 1948, além de ter alcançado outros autores, como Flaubert, H.G. Wells, Júlio Verne, Balzac e Franz Kafka.
Tive o prazer (imenso) de conhecer pessoalmente Marques Rebelo. Foi no começo da minha carreira jornalística, no idos de década de 50, quando trabalhava no jornal “Última Hora”. Samuel Wainer, em sua época dourada, comprou também a Rádio Clube do Brasil (PR-A3). E entregou a direção ao seu amigo Eddy Dias da Cruz. Ele logo valorizou o lado jornalístico da emissora e deu força ao setor de esportes, dirigido por Raul Longras. Havia uma parceria muito estreita entre a rádio e o jornal, tanto que muitos repórteres da “Última Hora” eram apresentadores na emissora de rádio, entre eles eu me encontrava, transmitindo notícias – e até jogos de futebol, como ocorreu na estreia com um Fluminense x Portuguesa, no campo do América F.C.
Por falar no clube de Campos Sales, Marques Rebelo era completamente apaixonado pelo América, ao qual dedicou muitas crônicas de louvor e encantamento. Era levado por um pensamento que ficou para sempre guardado: “Nenhum minuto é vazio, desde que possamos sonhar.”
E tivemos a vida acadêmica de Marques Rebelo, a partir de 1965, na cadeira nº 9. Ao tomar posse, revelou-se “um carioca de Vila Isabel, bairro que tem nome de princesa, mas é proletário e pequeno-burquês, e cuja gente humilde foi o básico material de sua ficção e do seu amor.” Marques Rebelo chegou a participar da diretoria da Casa de Machado de Assis, depois de retratar a cidade nos últimos anos pré-industriais, quando na Tijuca ainda se faziam serenatas, a Lapa estava no auge e casais de namorados passeavam de bonde.
Jornal do Commercio (RJ), 19/7/2013
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